sábado, 20 de agosto de 2011

Einstein: o diálogo com o vento

O autor recomenda que o leitor não se prive da visita aos links que encontrará no texto: são parte integrante deste, ilustram-no e o enriquecem.

Como é bem sabido, Einstein amava velejar, e o fazia no rio Havel, e nos lagos por onde este rio se espraia, nas vizinhanças de Berlim. Ali, Elsa Einstein, sua esposa, encontrara um local delicioso, em meio a muitas árvores, na aldeia de Caputh , perto de Potsdam, no que se diria hoje a "grande Berlim". Einstein adquiriu ali uma bela casa, onde passaram verões felizes e numa privacidade que só ali podiam obter. Costumava velejar solo, imerso em seus pensamentos,dialogando com o vento, e é impossível reprimir a evocação do verso famoso de Wordsworth, dedicado a Newton, a quem via "Travelling through strange seas of thought, alone".
Em outubro de 1933 esse refúgio idilíaco foi invadido pelas tropas paramilitares do partido nazista, na presença da família Einstein, e seu barco, destruído. Uma estojo de ferramentas para esculpir madeira foi exibido como um "arsenal", e a vida de Einstein esteve por um fio. Dirigindo-se à esposa, disse: "Olhe bem para a nossa casa, porque é a última vez que você a está vendo". No mesmo dia partiu da Alemanha, provavelmente ajudado pela rainha Elizabeth da Bélgica, sua amiga e acompanhante em duetos musicais, e, de lá, para Princeton, nos Estados Unidos, onde o Instituto de Estudo Avançado lhe reservava uma posição.
Uma vez em Princeton, Einstein iniciou a reconstrução de sua vida. Descobriu, no leste de Long Island, uma região que lhe lembrava as amplas lagoas do Havel. Ali, o rioPeconic desagua no mar, numa baía bem protegida das vagas, semeada de ilhas, com uma costa rica de pequenas enseadas. Em Nassau Point, na rua Old Cove, encontrou um casa adequada, que alugou por muitos verões. É ainda hoje conhecida como "a casa de Einstein".
Um belo dia, no verão de 1939, o Sr. David Rothman, proprietário da "Rothman's Department Store", na vizinha Southhold, viu Einstein entrar em sua loja. Reconheceu-o imediatamente, mas decidiu tratá-lo como um freguês qualquer. Perguntou-lhe o que desejava, e Einstein respondeu, no seu forte sotaque alemão: "Sundials". O Sr. Rothman não possuía relógios de sol em seu estoque, mas tinha um no quintal da loja. Convidou o cliente a seguí-lo e, atrás da loja, mostrou-lhe o relógio, e disse que podia levá-lo, se desejasse. Passada a surpresa, Einstein se recompôs, riu e repetiu, agora apontando para os pés: "Sundials!". Ah, sandálias o Sr. Rothman as tinha, e o cliente, atendido satisfatoriamente, logo fez um novo amigo. Descobriram que compartilhavam um amor pela música de violino, marcaram um encontro, e a amizade se solidificou, primeiro com esses saraus musicais na casa de Einstein, depois, quando ficou claro que as habilidades do Sr. Rothman estavam muito aquém das de Einstein como músico, com conversas que se prolongavam noite adentro.
Nesta mesma casa, numa manhã de sol em que conversava, na varanda, com o Sr. Rothman, Einstein recebeu a visita de Leo Szilard e Eugene Wigner, que lhe traziam a minuta de uma carta, que pretendiam fosse assinada por ele, encorajando o presidente Roosevelt a iniciar um programa de construção de armas nucleares. Esta famosa cartacontém uma curiosidade : o endereço do remetente, Einstein, está errado: em lugar de Old Cove Rd. está escrito, e eternizado, o endereço, inexistente, Old Grove Rd..
Como em Berlim, Einstein divertia-se velejando em seu pequeno barco "Tinef" (ídiche para "lixo") e conversava com seus amigos locais. Naquela época estava já trabalhando em sua Teoria do Campo Unificado. Em conversa com o Sr. Rothman, tentava explicar-lhe a relação entre o microcosmo e o macrocosmo. O amigo lhe sugeriu, como exemplo, o paralelo entre os planetas em suas órbitas e os elétrons em torno ao núcleo. Einstein disse: "Estou interessado não tanto nas partículas, quanto no espaço entre elas". Tomemos este fragmento de uma conversa de verão como início de uma incursão à visão do mundo que caracterizou o Einstein maduro, e que nasceu de bem outras fontes, Hume e Mach, e desabrochou num pensamento que foi sendo aperfeiçoado pela prática, pela sua genial prática.

"Estou interessado não tanto nas partículas quanto no espaço entre elas."

Esta frase de Einstein revela sua total entrega ao conceito de campo. Um importante eco deste mote se encontra na grande voz da teoria quântica dos campos, Julian Schwinger, em seu importante, se pouco estudado, "Particles, Sources and Fields". À página 24, na "Crítica às teorias de partículas", declara: "Mais importante do que as partículas como portadores das propriedades físicas são os elementos de volume do próprio espaço tri-dimensional".
Lembremos que Einstein, no trabalho que inaugurou sua carreira de "novo Newton", "Sobre a Eletrodinâmica dos Corpos em Movimento", diz, na tradução esmerada de Arthur I. Miller (Apêndice de "Albert Einstein's Special Theory of Relativity"): "The introduction of a luminiferous ether will prove to be superfluous because the view here to be developed will introduce neither an absolutely resting space provided with special properties, nor associate a velocity-vector with a point in empty space in which electromagnetic processes occur" (A introdução de um éter luminífero se mostrará supérflua porque o ponto-de-vista a ser desenvolvido aqui não introduzirá um espaço de repouso absoluto nem associará um vetor velocidade a um ponto no espaço vazio no qual processos eletromagnéticos ocorrem). A remoção do éter foi completada, uma vez completadas as idéias que a tornaram possível e/ou desejável, pela atribuição ao vazio, ao "espaço entre as partículas", daquilo que realmente "interessa". Se chamarmos, e o próprio Einstein ocasionalmente o propôs, o conjunto de propriedades desse "vazio" de éter, teremos um exemplo de progresso dialético que muito alegraria a Hegel e Engels.
Einstein confessa freqüentemente seu débito a Hume e a Mach, Mais a Hume do que a Mach, qualifica, em sua maturidade. Seu débito a Mach é claro e escancarado: o físico e epistemologista austríaco continuara a crítica de Berkeley a Newton, em base à famosa experiência do balde em rotação, e a aprofundara, terminando por concluir, como magistralmente relatado por Hans Reichenbach em "From Copernicus to Einstein", que, em base às idéias de que o movimento é relativo, a gravitação de Newton é insustentável, pois a correta análise lógica da experiência do balde requer que massas em movimento possuam um campo gravitacional adicional àquele que têm quando estão em repouso, contrariamente ao dictum newtoniano. De fato, o magistral "Fundamentos da Relatividade Geral" ("The Collected Papers of Albert Einstein", Vol.6, Princeton, 1997) apresenta, já em seu parágrafo 3, o estudo de um sistema de referência em rotação, e associa as contrações de Lorenz tangenciais (e a ausência delas nas medidas radiais) a uma mudança de geometria, que, por sua vez, é associada aos campos gravitacionais equivalentes à rotação, previstos por Mach. A conexão gravitação-geometria o faz devedor de Mach (por outro lado, a verdadeira geometria está no espaço-tempo, e é dificil imaginar um conceito que mais aborreceria Mach do que este...).
A gravitação einsteiniana cria uma primeira teoria verdadeiramente de campo, ao responsabilizar a geometria do espaço-tempo pelas pesos e demais efeitos da atração gravitacional, e completa-se ao prever ondas nesse espaço-tempo, as ondas gravitacionais. Não por último, atribui uma velocidade finita, a velocidade máxima, à propagação da ação gravitacional. O vazio é, agora, o lugar onde as coisas estão verdadeiramente acontecendo: é o espaço entre as partículas que é interessante.
Por outro lado, Einstein tinha uma posição filosófica incompatível com a de Mach. Era um atomista, o maior, talvez, dos atomistas. Em seu "annus mirabilis" apontara três vezes para métodos de medir o raio de moléculas...

"É a teoria que... "

Einstein aprendera de Hume que a pura observação da natureza, e organização dos dados colhidos pelos nossos sentidos, não geram correlações lógicas do tipo que chamamos "teorias". Kant remediara isto introduzindo os juízos sintéticos a priori, juízos não obtidos da experiência ou da análise, mas necessários para o funcionamento do nosso intelecto. Deu como um dos exemplos desses sintéticos a priori, a geometria euclideana (o que logo excluiu Einstein de seus seguidores, et pour cause...). As idéias de Hume, unidas à prática, levaram Einstein a uma posição epistemológica que, primeiro, surpreendeu, para, depois, se não dominar, tornar-se palatável à ciência do seculo XX. Para relatá-la, é melhor partir de uma anedota envolvendo Heisenberg. Uma boa referência para este tópico é Holton, que cito, traduzindo.
Em 25 de setembro de 1925 Heisenberg publicou sua abertura revolucionária à mecânica quântica, "Sobre a reinterpretação quantum-teorética de relações cinemáticas e mecânicas". Bem no início, coloca seu princípio guia: "Este trabalho é uma tentativa de achar fundações para uma mecânica quantum-teorética que se baseie exclusivamente em relações entre quantidades que sejam em princípio mensuráveis". No ano seguinte, Heisenberg deu um seminário de duas horas no famoso colóquio de física mantido porvon Laue , na Universidade de Berlim. Na audiência, com um grupo de "potentados", sentava-se Einstein. Este, interessado e, sem dúvida, disturbado pela palestra, convidou Heisenberg a acompanhá-lo à sua casa, caminhando. Seguiu-se uma notável discussão, que Heisenberg relatou muitas vezes.
No encontro, Heisenberg tentou, mais uma vez, chamar a atenção para o fato de que não lidara com órbitas inobserváveis dentro de átomos, mas apenas com radiação observável. Ele relata ter dito a Einstein: "Uma vez que é aceitável deixar participar da teoria apenas magnitudes diretamente observáveis, pensei ser natural restringir-me a elas, tornando-as, por assim dizer, representantes das órbitas eletrônicas". A isto, Einstein teria respondido: "Mas você não acredita seriamente que apenas quantidades mensuráveis possam participar de uma teoria!" Heisenberg continua: "Em espanto, eu disse: Eu pensei que fora exatamente você que fizera deste pensamente o fundamento da teoria da relatividade... Einstein replicou: Talvez eu tenha usado esta espécie de filosofia: mas é, não obstante, destituída de sentido (Unsinn)". E então veio a famosa sentença de Einstein: "Somente a teoria decide o que se pode observar".
Em 1927, enredado em problemas conceituais da mecânica quântica, Heisenberg encontrou a saída, e a chave para o trabalho em que introduziu as relações de incerteza, na terrificante frase de Einstein: "Somente a teoria decide o que pode ser observado". Heisenberg se convertera à epistemologia de Einstein.
Vinte e dois anos antes, em um dia do final de junho de 1905, um jovem apressava o passo, abrindo seu caminho para o local de trabalho, o Birô de Patentes de Berna. Não via a hora de se encontrar com seu colega, Michele Besso, e lhe contar que havia, finalmente, resolvido o problema que o ocupava havia meses e que descrevera anteriormente como "um estudo aprofundado da teoria dos elétrons". Em um cartão postal já anunciara o fato a um outro amigo, Conrad Habicht. Tratava-se da Teoria da Relatividade. Mal sabia ele quanto a sua descoberta iria mudar o mundo, e o seu próprio pensamento. E o de Heisenberg. E o do mundo.

Henrique Fleming
Instituto de Física

Universidade de São Paulo

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