sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Brincando de Deus: como criar um universo de “Space Opera”

Quando um escritor de alta fantasia se propõe a escrever um épico ou série de contos, quase sempre começa por criar um mundo – ou, no mínimo, uma grande ilha ou pedaço de continente – e decidir sobre suas características e sobre o grau e tipo de magia que pretende permitir, mesmo que consiga resistir à tentação de infligir todos os pormenores ao leitor.
Autores de space opera têm uma responsabilidade teoricamente muito maior – trata-se de criar um universo, ou no mínimo um bom pedaço de galáxia – mas na maioria dos casos parecem pensar menos no assunto. Afinal, não parece ser preciso inventar muita coisa: tudo se passa, supostamente, no nosso universo real, num futuro ou numa galáxia muito distante. Basta acrescentar naves estelares, algumas tecnologias futuristas e estamos conversados.
Seria aconselhável pensar duas vezes: no nosso universo real, apenas com as leis da natureza que conhecemos, a maioria das space operas são fisicamente impossíveis. Quase por definição, esse subgênero, quando ultrapassa a escala de um sistema solar para conquistar o espaço interestelar, exige algum afastamento do purismo da ficção científica hard. Para evitar a contradição ou inconsistência, o autor deveria escolher conscientemente em que direção prefere se afastar, ou qual é mais compatível com as histórias que quer escrever.
O nó do problema está em que três características essenciais para um universo de space opera são incompatíveis ou, para ser filosoficamente rigoroso, incompossíveis. Não podem existir ao mesmo tempo, no mesmo universo, uma força irresistível e um objeto inamovível, um ácido que tudo dissolve e um metal imune a todos os ácidos. Da mesma forma, não podem absolutamente existir ao mesmo tempo no mesmo universo: 1) deslocamento mais rápido que a luz (não importa se o truque é dobra espacial, hiperespaço, portal, ansível ou qualquer outro); 2) a causalidade, no sentido de que a causa deve preceder o efeito; e 3) as leis da relatividade restrita (ou relatividade especial).
Um autor deveria decidir de qual dessas três características prefere abrir mão: cada uma das escolhas leva a uma diferente categoria de universos, com diferentes possibilidades, habitado por diferentes tipos de personagens e tramas.
UNIVERSO TIPO I
O universo do tipo I é aquele que abre mão da velocidade mais rápida que a luz, mantendo a causalidade e a relatividade restrita. Tanto quanto sabemos, concorda a grande maioria dos físicos e cosmólogos, assim é o universo no qual realmente vivemos. Nunca se descobriu evidência em contrário – embora também ainda não se tenha uma demonstração definitiva de que as alternativas são impossíveis. Seria, portanto, a escolha natural de quem pretende criar uma space opera tão hard quanto possível. Ou não?
O problema é que uma história baseada nessas premissas tem de se submeter a limites mais rígidos do que geralmente se deseja. Uma possibilidade é restringir o cenário ao Sistema Solar, mas além de abrir mão do gigantismo da space opera tradicional, isso, em termos de ficção científica hard contemporânea, também significa desistir de alienígenas propriamente ditos, embora se possa especular o quanto se queira sobre inteligências artificiais e humanos modificados por engenharia genética. Caso se queira viagens interestelares a todo custo, elas levarão décadas, séculos ou milênios, ao menos do ponto de vista dos que ficam em casa. Graças aos efeitos relativísticos, elas podem ser mais curtas do ponto de vista de quem viaja e podem ser encurtadas ainda mais se forem usados recursos como animação suspensa, mas ainda assim é uma realidade difícil de trabalhar.
Caso a Terra queira enviar uma missão a um planeta tão distante quanto Betelgeuse, ou seja, a 650 anos-luz, terá de esperar no mínimo 1.300 anos por seu retorno. Mesmo que para os astronautas a viagem dure “apenas” 25 anos (supondo uma aceleração constante de uma gravidade ou 9,8 m/s²), quando voltarem encontrarão um mundo completamente transformado, que talvez sequer se recorde de os ter enviado. Se o objetivo for o centro da Via Láctea, os astronautas verão passar 40 anos de ida e volta, mas a Terra terá vivido 60 mil anos.
Boas histórias de ficção científica já foram escritas em cenários como esses – por exemplo, o romance Regresso das Estrelas, de Stanisław Lem, no qual astronautas voltam de uma missão interestelar de dez anos e sofrem tamanho choque cultural ao retornar a uma Terra onde se passaram 127 anos, que sentem ter desembarcado em um planeta alienígena.
Também há bons filmes, contos e romances sobre naves generacionais (generation ships) que, sem alcançar velocidades relativísticas, conduzem colônias humanas durante séculos ou milênios para estrelas distantes, ou transportam pessoas em animação suspensa.
Mas como conceber uma space opera interestelar convencional? Supondo que uma colônia a 650 anos-luz se revolte contra a metrópole, esta levaria 650 anos para tomar conhecimento da rebelião e no mínimo mais 650 para enviar uma frota, ou mesmo simples mensagens a suas tropas. Quando estas chegassem, teriam se passado 1.300 anos na colônia rebelde, cuja história teria tomado rumos imprevisíveis.
Nada de impérios galácticos. A menos que o autor pressuponha também que seus personagens são virtualmente imortais. Para seres capazes de viver centenas de milhares de anos, uma viagem de 1.300 anos é concebível e sua história poderia ter ritmos proporcionalmente majestosos. Carl Sagan, na série Cosmos, especulou a sério com civilizações desse tipo, talvez formadas por inteligências artificiais. A dificuldade é formular os motivos e problemas de tais seres e identificar-se com eles: mesmo que tivessem forma humana, seriam praticamente divinos do nosso ponto de vista, embora sejam perfeitamente plausíveis em termos de ficção científica hard. Talvez por isso, é uma solução muito incomum.
UNIVERSO TIPO II
Um universo do tipo II mantém as leis da relatividade restrita, formuladas por Albert Einstein em 1905, mas as combina com alguma forma de transporte ou comunicação mais rápida que a luz ou, mais rigorosamente, de produzir um efeito à distância mais rapidamente do que esse ponto poderia ser alcançado à velocidade da luz. Nada desse gênero foi detectado no nosso universo real, mas também não está provado que seja impossível – e para um autor de space operas, é praticamente indispensável, como vimos.
Mas se as leis da relatividade restrita são válidas – coisa de que nenhum físico respeitável hoje duvida – então a viagem mais rápida que a luz implica automaticamente viagem no tempo e se a primeira for rotineira, então a segunda também o será. Para entender a razão, é preciso ter algumas noções da teoria da relatividade. Supondo que o leitor as tenha, o seguinte gráfico, um diagrama de Minkowski baseado no desenho de Wayne Throop em http://sheol.org/throopw/tachyon-pistols.html, pode ajudar.
Os caminhos N1, N2 e N3 pelo espaço-tempo são as setas coloridas de azul e verde. Os eventos no espaço-tempo que são considerados “simultâneos” e “8 segundos depois da partida” são os que ficam ao longo das linhas mais finas. Então vemos que, do referencial de cada um dos três observadores, são os outros dois que têm seu tempo dilatado e retardado. Se for possível se mover mais rápido que um cone de luz, será possível ir em direção ao passado, segundo algum referencial.

Vamos agora dar uma interpretação física ao gráfico. Pouco impressionado pelos restos de quadrotriticale envenenado pelos klingons e infestado por cadáveres de pingos que lhe foram presenteados pela Federação, mas forçado a optar entre aderir a ela ou ao Império Klingon, o presidente do planeta Sherman decidiu que os capitães inimigos, Kirk e Koloth, decidirão a disputa em um duelo entre duas naves, N1 (USS Enterprise) e N2 (IKS G’roth). Segundo as regras por ele definidas, cada uma das naves será armada com um único torpedo fotônico, capaz de atingir dobra 9 ou mais de mil vezes a velocidade da luz, de maneira que chega ao alvo de maneira praticamente instantânea. As duas naves devem partir em direções opostas a uma velocidade relativa de 260 mil quilômetros por segundo (86,6% da velocidade da luz), contar oito segundos e disparar. Para observar o cumprimento das regras, o presidente permanece na nave presidencial N3, perto do ponto de partida.
Com essa velocidade, o fator relativístico de dilatação do tempo entre as naves N1 e N2 é de 2. Kirk conta oito segundos e então dispara. Ora, no referencial da Enterprise (tão válido quanto qualquer outro, pela teoria da relatividade), a nave Klingon está em movimento relativo e sofre a dilatação do tempo por um fator 2. Portanto torpedo α, com velocidade praticamente infinita, atinge a nave de Koloth quando seu relógio contou apenas 4 segundos!
Ao mesmo tempo, Koloth tem todo o direito de considerar que é a Enterprise que está em velocidade relativística e sofre, portanto, a dilatação do tempo. Ao ser atingido aos 4 segundos, fica enfurecido ao julgar que Kirk disparou antes da hora e dispara imediatamente, por sua vez, antes que sua nave se desintegre, disparando o torpedo β. Acontece que, como no referencial de Koloth é a Enteprise que sofre dilatação do tempo, o disparo atinge a nave de Kirk aos dois segundos da partida – ou seja, seis segundos antes de disparar contra Koloth!
Não é uma questão de quando a luz atinge o observador. Não é uma ilusão de óptica, como na famosa “Manobra Picard”. Trata-se do fato de que, segundo a relatividade restrita, a questão do que significa ocorrer “ao mesmo tempo” depende do referencial. Quando Kirk disparou aos oito segundos, o torpedo atingiu Koloth de maneira praticamente instantânea em seu referencial, mas para Koloth, que se movia a 260 mil quilômetros por segundo em relação a Kirk, sua nave foi atingida quatro segundos ANTES de o raio ser disparado. Não por que nos seus sensores (supondo que funcionem com radiação eletromagnética, neutrinos ou qualquer radiação que viaje à velocidade da luz) pareça que lançador de torpedos foi energizado antes – pelo contrário, só receberiam esse aviso bem depois de serem atingidos.
Não é tudo: a nave verde (Koloth) dispara aos oito segundos, da mesma maneira o disparo vai ao longo da “linha de simultaneidade” verde γ e atinge a nave azul (Kirk) aos quatro segundos. Se Kirk responde ao fogo desse ponto, igualmente o tiro retorna ao longo de uma “linha de simultaneidade” δ paralela à linha azul e pega Koloth desprevenido aos dois segundos. Ou seja, embora as naves tenham partido com um torpedo cada uma, quatro torpedos foram disparados e cada uma das naves destruída duas vezes. Claro que o paradoxo pouco importa ao árbitro em N3: tudo que ele queria era livrar-se dos dois importunos para manter sua independência. O presidente dá de ombros e manda seu capitão retornar a Sherman.
É fácil ver que se não só os torpedos, mas as próprias naves puderem viajar mais rápido que a luz, então qualquer batalha entre frotas estelares pode se transformar numa maluquice para Douglas Adams nenhum botar defeito. Se um grupo de naves estiver a ponto de perder a batalha, pode voltar no tempo e juntar forças a si mesmo para mudar o resultado. Como também seu inimigo. Não é preciso nem que haja velocidade de dobra: basta haver uma forma de comunicação mais rápida que a luz – como os “canais subespaciais” de Jornada nas Estrelas – para embaralhar as relações de causa e efeito, pois naves em apuros poderiam informar o resultado da batalha para si mesmas horas antes dela acontecer, de forma a mudar sua tática.
Tais coisas acontecem ocasionalmente no universo trekker (por exemplo, em Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato e de forma ainda mais espetacular no Star Trek de J. J. Abrams), mas estão longe de ser tão frequentes quanto seria lógico esperar. Não deveria ser preciso fazer voltas em torno do sol, cair num vórtice temporal ou num buraco negro: se a velocidade de dobra é rotina, então a viagem no tempo também deve ser.
É por julgarem que o universo não pode ser assim tão maluco, que físicos como Stephen Hawking acham deve ser impossível a um objeto ou sinal atravessar um buraco negro, emitir partículas mais rápidas do que a luz ou manipular a estrutura do espaço de maneira a causar efeitos a uma distância dada em menos tempo do que seria possível alcançá-la à velocidade da luz. Afinal, de outra forma já deveríamos ter sido visitados por turistas do futuro, ou pelo menos recebido algumas repreensões de nossos descendentes.
Hawking conjetura sobre uma “censura cósmica” que impeça a existência de “singularidades nuas” (não rodeadas por um horizonte de eventos, de maneira que possam, em princípio, ser abordadas com segurança por uma nave espacial) e também sobre alguma “agência de proteção da cronologia” (metafórica, é claro), que tornaria impossível a viagem no tempo. Mas todas as tentativas de dar uma base teórica a essas especulações têm fracassado.
Até onde se pode deduzir com rigor, nada nas teorias físicas hoje aceitas impede que “buracos de minhoca” sirvam de atalho entre diferentes partes do espaço, nem que este se expanda mais rapidamente do que a velocidade da luz (como, aliás, deve acontecer na realidade, considerando a provável existência de galáxias para além do limite do universo observável). É verdade que, mesmo no papel, provocar tais efeitos e sobreviver a eles implica lidar com forças inimagináveis e quantidades absurdas de energia. Pior ainda, de energia negativa – coisa que nem se sabe com certeza se existe, quanto mais se pode ser manipulada. Mas até que se prove o contrário, é uma possibilidade teórica e pode legitimamente ser tratada como ficção científica hard – desde que se esteja disposto a pagar o preço dos paradoxos.
Uma maneira de limitá-los seria tornar a viagem mais rápida que a luz menos rotineira, mas quanto mais rara ela for, mais longe se estará do que geralmente se entende por space opera. Na prática, a maioria das space operas que optam por esse tipo de universo e mostram alguma consciência do problema parece pressupor o contrário: que é rotina viajar muitas vezes mais rápido que a luz, mas raro viajar a velocidades relativísticas – quer dizer, a uma fração grande da velocidade da luz, números de cinco dígitos em termos de quilômetros por segundo.
Em Jornada nas Estrelas, velocidades relativísticas são possíveis (“impulso total”), mas as naves estão a maior parte do tempo em dobra ou em órbita. Na série Fundação, de Isaac Asimov, elas saltam instantaneamente entre as estrelas por meio de um “hipersalto” do qual só se sabe que é difícil de calcular, mas de resto movem-se a velocidades modestas. Em Star Wars, a Millenium Falcon pode entrar no hiperespaço e viajar da periferia ao centro brilhante da galáxia em dias, mas no espaço normal não faz mais que algumas dezenas de quilômetros por segundo e pode ser alcançada por um Star Destroyer. Em outros universos, como o Taikodom de Gerson Lodi-Ribeiro, portais legados por uma misteriosa raça desaparecida permitem atravessar anos-luz num piscar de olhos, mas fora deles as velocidades são limitadas. Em qualquer desses universos, os efeitos relativísticos raramente ou nunca vêm à baila.
É uma restrição artificial. Por que uma civilização capaz de viajar mais rápido que a luz não impulsionaria veículos à metade, três quartos ou mesmo 90% da velocidade da luz com facilidade igual ou maior? E mesmo com velocidades baixas, os paradoxos voltam a aparecer se as distâncias viajadas em velocidade superluminal forem suficientemente grandes. Mas é tão tentador ter o melhor dos dois mundos, comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo...
Basta esconder o truque para se poder viajar mais rápido que a luz a maior parte do tempo sem se preocupar com paradoxos temporais – e de brinde, ter como providenciar uma viagem no tempo se isso convier à trama. O problema é não deixar o leitor ou espectador perguntar por que o capitão não tenta voltar ao passado quando isso poderia salvar vidas ou mesmo um planeta Vulcano inteiro. Nem deixá-lo desanimar de entender a trama (ou de se interessar por ela) só porque tudo que os heróis viveram pode ser desfeito com um passe de mágica a cada mudança de roteirista ou capricho do autor. O abuso dessa prática virou praga nas histórias de super-heróis e pode ameaçar a nova fase de Jornada nas Estrelas.
UNIVERSO TIPO III
Mas ainda não esgotamos as possibilidades lógicas. E se decidirmos ter velocidades superiores à da luz, mas quisermos nos apegar à concepção tradicional de causa e efeito, de decisões irrevogáveis? É logicamente possível: basta que se abra mão da teoria da relatividade restrita. Nesse caso, pode-se viajar a qualquer velocidade, do jeito que se bem entender, usando à vontade telecomunicações mais rápidas que a luz ou mesmo instantâneas (como o “ansível” de Ursula K. LeGuin) sem se preocupar com paradoxos.
Não é só uma questão de evitar complicações difíceis de deslindar tanto para o autor quanto para o leitor. A história pode ganhar em força dramática se não houver dúvidas de que, sejam quais forem as peripécias, o passado é irrevogável. Fica mais próxima de nossa intuição e experiência de vida: o que está feito, está feito, não adianta chorar sobre o leite derramado e só se pode pensar o que fazer daqui para a frente. Combinar esse senso de seriedade e realidade com as possibilidades de um grandioso cenário interestelar tem seus atrativos.
As primeiras space operas em escala interestelar, criadas por E. E. “Doc” Smith de 1934 a 1948 e imitadas por muitos autores de ficção pulp, passavam-se em um universo desse tipo – ainda que “Doc” o fizesse menos por opção consciente do que por não entender a teoria da relatividade, na época debatida apenas nos meios especializados. Em seu universo, basta anular a inércia das naves com um “gerador Bergenholm” para que meros propulsores de reação, usando energia atômica ou conversão de matéria em energia, podem movê-las a velocidades superiores à da luz, limitadas apenas pelo atrito com o tênue gás interestelar.
Claro que em nosso universo, mesmo que fosse possível anular a inércia da matéria, ainda assim seria impossível viajar mais rápido que a luz (embora se economizasse combustível). A partir dos anos 1950, autores cientificamente mais sofisticados, como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e L. Sprague de Camp, fizeram questão de ensinar a seus leitores os rudimentos da teoria da relatividade e a necessidade de respeitar o limite da velocidade da luz – ou de postular recursos realmente mirabolantes para contorná-lo, tais como dobra espacial, hipersalto, hiperespaço etc.
O público de ficção científica hard perdeu a inocência dos anos 30: não dá mais para escrever para nerds fazendo de conta que Einstein nunca existiu. Até porque a relatividade restrita hoje é confirmada todos os dias, não apenas por experimentos de laboratório (a partir da clássica experiência de Michelson-Morley em 1887), mas também pelo uso de um equipamento tão comum e quotidiano quanto o GPS.
A velocidade relativa dos satélites que lhe servem de referência, cerca de quatro quilômetros por segundo, exige que os efeitos relativísticos sejam levados em conta no cálculo do posicionamento global. Se a relatividade restrita fosse ignorada, os erros se acumulariam à razão de cerca de dez quilômetros por dia e o equipamento seria inútil.
Além disso, os desenvolvimentos da teoria da relatividade, bem como os da mecânica quântica que vieram a seguir, forneceram inúmeras possibilidades fascinantes para explorar na ficção científica: dilatação do tempo e do espaço, buracos negros, buracos de minhoca, dimensões múltiplas, partículas exóticas, matéria escura, energia escura, incerteza quântica, universos múltiplos, ondas de gravidade e assim por diante.
Seria uma pena abrir mão de tudo isso, quando se quer apenas evitar as viagens ao passado. Não haverá uma maneira de proibi-las sem ignorar os fatos da física, nem abrir mão desses avanços especulativos? E de tornar essa “realidade” aceitável em termos de ficção científica?
Talvez haja. Pode-se supor que, apesar do sucesso da relatividade restrita, existe um referencial absoluto. Pode ser a radiação de fundo ou a “espuma quântica” que se supõe dar a textura ao que chamamos de vácuo que tome o lugar do desacreditado éter luminífero, mas o importante é que se supõe que a simultaneidade só é real em relação a esse referencial. Se for possível supor que isso é verdade, pode-se esquecer os diagramas de Minkowski: naves, torpedos, partículas ou mensagens mais rápidas que a luz ou mesmo de velocidade infinita não criam dificuldade nenhuma.
Muitos físicos amadores e “pesquisadores independentes” apegam-se apaixonadamente à ideia de provar a existência do referencial absoluto (chamem-no ou não de “éter”) e “desmentir Einstein”, muitos dos quais debatem ou são citados no fórum http://www.anti-relativity.com. Os argumentos no mínimo são capazes de confundir um leigo inteligente e um desses excêntricos, Ronald Hatch, é um dos diretores da NavCom, um fabricante de sistemas GPS. Mas esses trabalhos não resistem a uma revisão por profissionais muito mais do que um projeto de moto perpétuo e às vezes se articulam com delírios sobre conspirações de cientistas para impor o “dogma” da relatividade (às vezes confundida com relativismo filosófico, que é coisa completamente diferente) e assim sufocar o pensamento independente e minar a civilização cristã e o American way of life.
Mas num nível mais sério, alguns físicos profissionais – como o canadense Stéphane Baune, o chinês Tsao Chang e os italianos Cavalleri e Spinelli – exploraram em tempos recentes as possibilidades e as implicações teóricas de “referenciais de preferência” para resolver certas dificuldades da mecânica quântica – em particular, o fenômeno do entrelaçamento quântico, no qual duas partículas “entrelaçadas” que se distanciam influenciam o estado uma da outra de maneira instantânea. Ao contrário dos amadores excêntricos, não alegam ter provado que a relatividade restrita está errada: apenas que poderia haver outra explicação.
Adotando-se duas hipóteses heterodoxas, os fenômenos explicados pela relatividade restrita podem ser compatibilizados com um referencial de preferência: 1) a velocidade da luz só é isotrópica (igual em todas as direções) no referencial de preferência; e 2) os objetos que se movem em relação a esse referencial sofrem uma contração de comprimento real (e não só relativa a outro referencial, como na teoria da relatividade restrita).
Explicar como essas hipóteses substituem os axiomas da relatividade restrita não cabe neste texto, mas o que nos interessa é que, em princípio, os fenômenos conhecidos não são incompatíveis com um universo de referencial absoluto. Experiências que decidiriam entre tais modelos e a relatividade restrita são imagináveis, mas ainda não praticáveis.
Por que não adotar um modelo como esse, se convier aos nossos fins ficcionais? Vai deixar professores de física de cabelo em pé e para os fãs incondicionais da Golden Age de Clarke e Asimov pode soar como uma heresia e um retorno à barbárie da ficção pulp dos anos 1920 e 1930. Mas é uma possibilidade consistente, ainda que improvável (não necessariamente mais do que um Universo tipo II) e uma ficção nela baseada poderia reivindicar o título de hard, desde que se tenha o cuidado de explicitar seus pressupostos heterodoxos.
Neste tipo de universo, pode-se tanto usar dobra espacial quanto velocidade de impulso “relativística” quanto usar um ansível para bater papo em tempo real com um amigo na Galáxia de Andrômeda sem sustos: não se corre o risco de viajar ao passado ou de embaralhar causas e efeitos. As leis da relatividade geral (formuladas por Einstein em 1915) e da mecânica quântica moderna continuam verdadeiras. Ainda são necessários recursos espantosos para se ultrapassar o limite da velocidade da luz. Todo o enxoval da especulação científica do século 21 – energia negativa, partículas exóticas, buracos de minhoca, multiversos – continua aproveitável. A dilatação do tempo pela gravitação e aceleração continua a existir, o que permite “viagens para o futuro”. Só a viagem ao passado é, em princípio, impossível.
É uma alternativa pouco explorada, ao menos de forma explícita – embora, na prática, muitos universos de ficção científica funcionem desse modo, sem que as regras sejam explicitadas. Para quem quer histórias sobre sociedades de escala interestelar ou galáctica, com personagens que não precisem obrigatoriamente ter longevidade e noção de tempo sobre-humanas, sem complicar a trama com especulações sobre paradoxos temporais, pode ser uma boa pedida. Não é esse o espírito da space opera?

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