sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Circulo de Urano

 
Amigos meus! Novamente reunidos nesta noite, 18 de novembro do ano de
1972, décimo ano de Aquário, com o propósito de estudar o oitavo círculo
dantesco, submerso sob a crosta terrestre, nas infradimensões da natureza.
Ao entrar nas explicações, temos que começar por repassar o que já
dissemos, em outros textos, com relação ao tantrismo negro.
Obviamente existem três tipos de tantrismo. Primeiro, tantrismo branco.
Segundo, tantrismo negro. Terceiro, tantrismo cinza.
Os indostânicos nos falam francamente sobre a Serpente Ígnea de Nossos
Mágicos Poderes, esse poder eletrônico solar que ascende pela medula
espinhal dos ascetas.
É claro que Fohat transcendente se desenvolve, exclusivamente, com o
tantrismo branco. A chave a temos dado em nossos livros anteriores. Não
obstante, repeti-la-emos: "Conexão do Lingam-Yoni (falo-útero), sem
ejaculação do esperma sagrado."
Tantrismo negro é diferente. Existe conexão do Lingam-Yoni, ritos mágicos e
ejaculação seminal. O resultado, nesse caso concreto, é o despertar da
Serpente Ígnea em sua forma estritamente negativa.
É evidente que o Fogo Sagrado, no tantrismo negro, precipita-se desde o
cóccix até os infernos atômicos do homem. Então aparece a cauda de Satã, o
abominável órgão Kundartiguador.
Tantrismo cinza tem outros propósitos: Gozo animal sem anelos
transcedentes.
Ocupar-nos-emos agora, pois, de forma explícita, do abominável órgão
Kundartiguador.
Existem duas serpentes. A primeira, a do tantrismo branco, é a Serpente de
Bronze que sanava os israelitas no deserto, ascendendo vitoriosa pelo canal
medular espinhal. A segunda é a Serpente Tentadora do Éden, a horrível
Píton, que se arrastava pelo lodo da terra e que Apolo, irritado, feriu com seus
dardos.
A primeira, a Serpente de Bronze, o fogo ascendente, tem o poder de
despertar os chacras da espinha dorsal. Abre, diríamos, as sete igrejas do
Apocalipse de São João e nos converte em deuses terrivelmente divinos.
A segunda abre sete chacras que estão no baixo ventre, as sete portas do
Inferno, como dizem os maometanos.
Muito se falou sobre o Kundalini, o poder serpentino anular que se
desenvolve maravilhosamente no corpo de todo tântrico branco. Entretanto,
nós asseveramos solenemente que ninguém poderia gozar dos poderes da
Serpente Luminosa sem ter sido devorado antes pela mesma.
Agora vos explicareis, amigos e irmãos do Movimento Gnóstico, qual é o
motivo pelo qual os adeptos da Índia foram qualificados como najas
(serpentes).
Os grandes hierofantes da Babilônia, Egito, Grécia, Caldéia, etc., etc.,
chamavam-se a si mesmos serpentes.
No México serpentino, Quetzalcoatl, o Cristo mexicano, foi devorado pela
Serpente e, por isso, recebeu o título de Serpente Voadora.
Wotan era uma Serpente, porque havia sido tragado pela Serpente.
Resulta palmário e manifesto que o matrimônio profundo, a fusão integral da
Mãe Divina com o Espírito Santo, quer dizer, da Cobra Ígnea de Nossos
Mágicos Poderes com Shiva, o Terceiro Logos, o Arqui-Hierofante e o
Arquimago, só é possível quando tivermos sido devorados pela Cobra. Então
advém, gloriosa, a ressurreição do Mestre Secreto dentro de nós mesmos,
aqui e agora.
Convido, agora, a todo este auditório que me escuta e a todo o Movimento
Gnóstico em geral, para uma reflexão profunda sobre a antítese... É
inquestionável que a horrível serpente Píton é o oposto negativo e fatal, a
sombra, diríamos, a antítese radical da Serpente de Luz.
Indubitavelmente, no Abismo a verdade se disfarça de trevas.
Se, nas dimensões superiores da natureza e do cosmos, somos devorados
pela Serpente de Bronze que sanava os israelitas no deserto, obviamente, no
oitavo círculo dantesco, os condenados são devorados pela horrível Serpente
Tentadora do Éden. Então se convertem em víboras venenosas,
espantosamente malignas.
Quero que compreendais integralmente que a Serpente sempre há de nos
devorar, seja no seu aspecto luminoso ou no oitavo círculo infernal tenebroso.
Resulta patética a cena fatal da horrível Serpente Tentadora do Éden,
devorando os perdidos, com o propósito de destruí-los, desintegrá-los,
reduzi-los a poeira cósmica, para liberar a Essência, para restaurar a prístina
pureza original da mesma.
Só assim logra a alma emancipar-se do doloroso Tártaro.
É interessantíssimo saber que a Cobra sempre destrói o ego, já pela via
luminosa, à base de trabalhos conscientes e padecimentos voluntários, ou já
pela via tenebrosa, no oitavo círculo das fatalidades.
É maravilhoso saber que o ego sempre deve ser dissolvido, custe o que
custar, com a nossa vontade ou contra a nossa vontade, e que a Serpente
inevitavelmente nos deve tragar, os vitoriosos ou fracassados.
Essa Serpe Tentadora do Éden, essa horrível Píton é o aspecto negativo da
Mãe Divina. Cumprindo seu labor no Averno, volta à sua polarização positiva
na luminosa região.
Vede, pois, amigos e amigas, de que forma a Mãe Divina ama seu filho.
Aqueles que andam perdidos, os tântricos negros, ao desenvolver a Serpente
das Fatalidades, condenam-se à morte segunda inevitavelmente.
Bonzos e dugpas de turbante vermelho não poderão fugir jamais da Mãe
Divina Kundalini; ela os devorará inevitavelmente, custe o que custar.
No oitavo círculo infernal moram, desgraçadamente, os falsos alquimistas (os
tântricos negros), os falsificadores de metais, aqueles que cristalizaram
negativamente. Para ser mais claro, aqueles que, em vez de fazer cristalizar o
hidrogênio sexual Si-12 nos corpos existenciais superiores do Ser,
fizeram-no cristalizar negativamente, para se converter realmente em
adeptos da face tenebrosa, que, inevitavelmente, vêm a ser devorados pela
horrível Serpente das Fatalidades.
Quero que todos se dêem conta que há dois tipos de alquimia, dois tipos de
morte do ego e dois tipos de banquete que se dá a Serpente.
Vós podereis escolher o caminho.Elegei-o! Dá-se o conhecimento. Estais
ante o dilema do ser ou não ser da filosofia.
Ai de vós, os candidatos à morte segunda! Vossas torturas serão espantosas!
Só assim podereis morrer no tenebroso Averno.
De que outra forma se poderia emancipar a Essência? De que outra forma
poderia ficar livre para reiniciar um novo ciclo evolutivo, que indubitavelmente
começará desde a dura pedra?
No oitavo círculo infernal encontramos também os falsificadores de moeda, os
falsários, os aproveitadores de pessoas, os incestuosos, os semeadores de
discórdia, os maus conselheiros, os que prometem e não cumprem, os que
fazem escândalos e também os que formam cismas, gente falsa e mentirosa,
etc., etc., etc.
Esta oitava região submersa é a antítese, o oposto, o aspecto negativo de
Urano.
Muito interessante é este planeta do nosso sistema solar. Foi-nos dito que os
pólos norte e sul de Urano apontam alternadamente para o Sol.
Quando o pólo negativo deste mundo se orienta para o resplandecente Sol,
então, a força feminina manda em nosso aflito mundo.
Cada ciclo ou período magnético de Urano é de 42 anos. Assim pois, homens
e mulheres alternam seu mando aqui na Terra em ciclos ou períodos de 42
anos.
O período completo de Urano consta de 84 anos, 42 de tipo masculino e 42
de tipo feminino.
Observemos bem os costumes das pessoas, a história, e veremos épocas
intensivas de atividade masculina, como da pirataria, por exemplo, quando
todos os mares da Terra se encheram de corsários; e épocas como a
presente ou como aquela em que as amazonas estabeleceram seus cultos
lunares e governaram grande parte da Europa, fazendo estremecer o mundo.
A cada ciclo masculino, pois, segue um feminino e vice-versa. Tudo depende
da polarização de Urano e do tipo de energia que deste planeta vem à Terra.
É bom saber, para o bem da Grande Causa, que as glândulas sexuais são
governadas por Urano.
Necessitamos compreender integralmente que os ovários femininos também
são controlados por Urano.
Este planeta, como regente da nova Era de Aquário, traz uma revolução
completa ao nosso aflito mundo.
Não é, pois, de estranhar que, na submersa região de Urano, sob a crosta da
nossa Terra, definam-se os aspectos sexuais dos definitivamente perdidos e
a Serpente Tentadora do Éden trague os caídos, para iniciar o processo
destrutivo em grande escala, até concluir na morte segunda.
Em nosso passado livro, intitulado As Três Montanhas, dissemos que, no
reino mineral submerso do planeta Urano, o Iniciado tem que desintegrar o
mau ladrão, Caco ou Gestas, como aparece no Evangelho cristão.
Agato ou Dimas, o bom ladrão, é aquele poder íntimo que, do fundo do nosso
Ser, rouba o hidrogênio sexual Si-12 para nossa própria auto-realização
íntima.
Caco, o mau ladrão, o horrível Gestas, é aquele poder sinistro, tenebroso,
que rouba a energia criadora para o mal.
Não é demais informar que o abominável órgão Kundartiguador, resultado do
mau uso da energia criadora roubada por Caco, não somente se desenvolve
nos alquimistas negros ou tântricos tenebrosos, senão também nos
decididamente perdidos, ainda que estes não tivessem nenhum
conhecimento mágico.
Passando, agora, à esfera antitética de Urano, nos fundos abismais do
planeta Terra, pela lei dos contrastes e de analogia dos contrários e de
simples correspondência, também deve ser destruído o horripilante Caco.
Vejam vocês, pois, senhores e senhoras, estes aspectos luminosos e
tenebrosos antitéticos, de que forma se correspondem e de que modo se
desenvolvem...
P. – A Serpente Tentadora do Éden é a mesma Serpente Sagrada, Mestre?
V.M. – Meu estimável fráter! Muito interessante me parece sua pergunta e me
apresso em responder-lhe.
É claro que, no Averno, a verdade se disfarça de trevas. Resulta algo insólito
saber que a Cobra pode polarizar-se de forma positiva ou negativa.
Isto quer dizer que a Serpente Tentadora do Éden, ainda que sendo o
contraste tenebroso da Serpente de Luz, é , indubitavelmente, a polarização
negativa da Serpente de Bronze que sanava os israelitas no deserto.
Assombra saber que a radiante Serpente se polariza nesta forma fatal e isto
nos convida a compreender que o faz pelo bem de próprio filho, para destruir,
no Averno, os elementos infra-humanos que levamos dentro e nos liberar das
garras espantosas da dor. Assim é o amor de toda Mãe Divina.
P. – Querido Mestre, como é evidente que a maior parte dos habitantes deste
planeta não pratica nem o tantrismo branco nem o negro, senão o tantrismo
cinza, que é a prática sexual com derrame do ens seminis e sem nenhum
anelo transcedente, pergunto se toda essa maioria automaticamente ingressa
no oitavo círculo dantesco como os que praticam o tantrismo negro?
V.M. – Distinto cavalheiro! Sua pergunta é muito inteligente e quero que
entenda minha resposta. É bom que o senhor saiba que todo tantrismo cinza
se converte em negro, inevitavelmente.
Quando alguém desce no Averno, desperta negativamente.
Esse despertar fatal se deve ao desenvolvimento do abominável órgão
Kundartiguador.
É, pois, de saber, de forma contundente, que todo fornicário, ainda que
desconheça o tantrismo negro, é tântrico de fato e sobrevém, inevitavelmente,
como personalidade tenebrosa, com a Serpente Tentadora do Éden
completamente desenvolvida.
P. – Mestre, quando se falou do segundo círculo infradimensional,
explicou-nos que ali moram os fornicários e, somente para esclarecer o
conceito, desejaria saber que diferença há entre os fornicários que habitam
no círculo de Mercúrio e os que ingressam no oitavo círculo dantesco?
V.M. – Amigos, amigas! A luxúria é a raiz do ego, do eu, do mim mesmo, do si
mesmo. Isto nos convida a compreender que a lubricidade, a fornicação
existe inquestionavelmente em cada uma das nove infradimensões naturais
debaixo da crosta geológica de nosso mundo.
Não obstante, há uma diferença em tudo isto. Na esfera submersa de
Mercúrio, a espantosa Coatlicue, ou Prosérpina, a Serpente Tentadora do
Éden, não devora ainda seus filhos. Só na oitava região submersa vem a
dar-se ela seu espantoso banquete.
Agora nos explicaremos porque o Dante florentino vê, no oitavo círculo,
milhões de seres humanos feitos pedaços, sangrando, ferindo-se com suas
unhas e com seus dentes, decapitados, etc., etc.
É ostensível que em tal região submersa se inicia o processo de ossificação,
cristalização, mineralização e destruição de todo ego.
P. – Venerável Mestre, é verdadeiramente impressionante a narração que o
senhor nos fez sobre o amor da Divina Mãe, que, já seja no aspecto de luz ou
no de trevas, libera seu filho, a Essência, inclusive, pela via da mais tremenda
dor, dentro das entranhas da Terra. Como é, pois, que muitos magos negros
com Consciência desperta, sabendo da dor que têm que passar, persistem no
caminho do tantrismo negro e da morte segunda?
V.M. – Distinto cavalheiro! É bom que todos os aqui presentes saibam que
uns despertam para a luz e outros para as trevas, como já o disse em
passados livros.
Não obstante, existe uma diferença radical entre os que despertam
positivamente e os que o fazem de forma negativa.
Indubitavelmente, os perdidos, aqueles que despertaram no mal e para o mal,
mesmo sabendo que devem involuir nas entranhas do mundo até a morte
segunda, antes de lograr a restauração da prístina pureza original do material
psíquico, não se arrependem do caminho escolhido, porque fizeram de sua
involução e da rota fatal do Samsara uma religião, uma mística ... Não é
demais informar a este auditório que os adeptos da mão esquerda têm
templos nas regiões submersas, onde rendem culto ao aspecto negativo da
Serpente. Certamente, esses seres infra-humanos jamais desconhecem a
sorte que lhes está reservada. Ao contrário, desejam apressá-la, para
emancipar-se e sair livres à luz do Sol, com o propósito de voltar a começar
uma nova evolução, que haverá de se reiniciar, como já disse, começando
pela dura pedra e continuando pelo vegetal e pelo animal, até reconquistar o
estado de humanóide intelectual.
Quando alguém conversa com Javé, pode evidenciar claramente que os
perdidos aborrecem o Logos Solar e que se acham plenamente enamorados
da roda do Samsara (círculo vicioso e fatal).
P. – Não compreendo, Venerável Mestre, como é possível que um habitante
dessa infradimensão submersa do oitavo círculo dantesco, cuja Essência
engarrafada no tremendo eu da luxúria, possa nem sumariamente despertar
Consciência, já que, para que isto suceda, a Essência deve estar liberada do
Ego.
V.M. – Distinto cavalheiro! Repito o que antes já dissera, que uns despertam
para a luz e outros, para as trevas. Ao chegar a esta parte de nossa
conferência desta noite, vamos citar um versículo de Daniel, o Profeta.
Vejamos a Bíblia (Daniel XI,XII): "E muitos do que dormem no pó da terra
serão despertados, uns para a vida eterna e outros para a vergonha e
confusão perpétua". "Os entendidos resplandecerão como o resplendor do
firmamento e os que ensinaram a justiça à multidão, como as estrelas, para a
perpétua eternidade". "Porém tu, Daniel, cerra as palavras e sela o livro até o
tempo do fim. Muitos correrão daqui para lá e a ciência aumentará."
Como já estamos nos tempos do fim e como a ciência aumentou
escandalosamente, convém tirar o selo do livro e esclarecer a profecia.
Repito, o abominável órgão Kundartiguador tem poder para despertar a
Consciência naqueles que ingressam no Abismo, onde somente se escuta o
pranto e o ranger dos dentes.
Podemos, pois, despertar a Consciência de forma luminosa e positiva,
mediante a dissolução voluntário do ego, ou despertá-la no mal e para o mal,
mediante o desenvolvimento do abominável órgão Kundartiguador.
Cada qual pode escolher seu caminho. A profecia de Daniel foi declarada.
P. – Venerável Mestre, conheço muitos mentores espirituais que, com toda
sinceridade, vivem alijados das práticas sexuais, ou seja, que são célibe e
que, portanto, segundo posso entender, não estão classificados em nenhum
dos três tantras de que o senhor nos falou. Acaso estas pessoas não
ingressarão nesta região do Averno?
V.M. – Ai de vós, hipócritas fariseus! Sepulcros caiados! Perversa geração de
víboras, que o prato e o copo limpais, ainda que por dentro estejais cheios de
podridão!
O eu fariseu acha-se ativo no fundo de muitos devotos. Eles se presumem de
santos e de sábio, de castos e perfeitos; porém, no fundo, são
espantosamente fornicários.
O eu fariseu bendiz os alimentos ao sentar-se à mesa, tem atitudes pietistas,
auto-engana-se, crendo-se virtuoso; mas, na profundidade de si mesmo,
oculta desígnios inconfessáveis e propósitos maquiavélicos que justifica as
boas intenções.
No oitavo círculo dantesco, tais beatos são devorados irremediavelmente pela
Serpente Tentadora do Éden.
P. – Mestre, que nos pode o senhor dizer da densidade e elementos que
integram esta infradimensão?
V.M. – Distintos amigos! O oitavo círculo dantesco é uma região pétrea e
ígnea ao mesmo tempo. Ali o fogo tortura realmente os perdidos.
Esta zona submersa de Urano, sob a crosta geológica do planeta Terra, tem
cristalizações de insuportável materialidade.
Não é demais recordar, com inteira claridade que assombra, que, na
mencionada zona, cada átomo leva em seu ventre 768 átomos do Sagrado
Sol Absoluto.
Assim, pois, cada átomo desses é terrivelmente denso e, por isso, não é de
se estranhar que nessa região a materialidade é ainda mais densa que nos
sete círculos anteriores.
Igual número de leis (768) controla todas as atividades do oitavo círculo
infernal e, por isso, a vida nesta zona submersa do Averno resulta palmário
complicada e difícil. Por conseguinte, os sofrimentos se intensificam
terrivelmente na zona tenebrosa do aspecto negativo de Urano, sob a
epiderme da Terra.

Vala dos simoníacos
Espírito do papa Nicolau III
Ó Simão mago, e todos aqueles que te seguiram, profanando e vendendo as coisas de Deus pelo preço de ouro e prata! Em vossa homenagem devo soar a trombeta, pois é aqui, nesta terceira vala, onde estais!
Já estávamos no meio da ponte sobre a terceira vala. De lá eu vi nas encostas e nos fundos da pedra gelada, redondos furos escavados de igual tamanho. Da boca dos furos pendiam os pés de um penitente, cujo corpo estava enterrado nos buracos com a cabeça para baixo. Nas plantas dos pés ardiam chamas, que escorriam por seus calcanhares. Os sofredores, desesperados, agitavam seus pés freneticamente, na vã esperança de livrarem-se das dores causadas pelas chamas.
- Mestre - perguntei -, quem é aquele que se debate mais que os outros, e que é torturado por uma chama mais vermelha?
- Se quiseres- respondeu - eu te levarei até ele, e lá poderás perguntar quem ele é e de onde veio.
Concordei e ele me ajudou na descida difícil, me segurando enquanto passávamos pelas beiras esburacadas. Só quando eu estava diante do pecador foi que ele me soltou.

Dante conversa com o papa Nicolau III que o confunde com o papa Bonifácio VIII, aguardado naquela parte do Inferno. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).
- Ó tu, alma desgraçada que estás plantada, fala se puderes! - fui dizendo, enquanto me abaixava diante dele como um frade durante uma confissão.
- Já estás aí plantado? Já estás aí plantado, Bonifácio? Por muitos anos enganou-me o escrito! - falou a alma pensando que eu fosse outro. Fiquei imóvel sem saber como responder.
- Rápido, dize a ele que não és ele, que não és aquele que ele pensa que és - ordenou Virgílio, e eu respondi ao espírito da mesma forma como ele me pediu.
- Bem, então o que querem de mim? - perguntou, suspirando e torcendo os pés - Se querem saber quem eu sou, saibam que um dia fui papa, mas na verdade eu era filho da Ursa. Por tanto procurar embolsar ouro naquele mundo, aqui eu mesmo fui embolsado. Neste buraco, abaixo da minha cabeça, estão empilhados todos aqueles que me precederam, pecando por tráfico de coisas divinas, espremidos nas fissuras da pedra. Eu aguardo a chegada daquele que eu pensava que tu eras, que ocupará o lugar que hoje ocupo, me empurrando mais para baixo neste buraco. Os pés dele arderão em chamas até que ele seja também substituído por um pastor sem lei, que virá do ocidente, e que pelo rei da França será protegido. Ele cobrirá a Bonifácio e a mim.
Não resisti em respondê-lo com suas próprias palavras:
- Bem, dize-me quanto foi que Pedro teve que pagar ao nosso Senhor antes que Ele desse-lhe as chaves de sua Igreja? Estejas certo que ele pediu nada mais que "Me acompanha." Então fica tu aí pois essa tua punição é merecida. Tua avareza traz tristeza ao mundo, esmagando os justos, premiando os depravados. Criastes para vós, pastores pervertidos, um deus de ouro e prata! Pouca diferença há entre vós e os idólatras, exceto que eles só adoram a um, e vós adorais centenas!
E enquanto eu falava essas palavras, aqueles pés escoiceavam mais ainda, talvez por ira ou mordidas de consciência. O mestre então me levou de volta à ribanceira e seguimos para a quarta vala.
Vala dos adivinhos
Da nossa posição sobre o quarto valado pude ver procissões caladas caminhando e ouvir o seu pranto. Mas quando olhei com mais atenção eu vi, com espanto, que todas as pessoas tinham a cabeça torcida. Só podiam andar para trás, pois olhar para frente não lhes era permitido. Vendo tal imagem torta e as lágrimas que vertiam descendo pelas nádegas, não pude conter-me e chorei também.
- Ainda estás com esses tolos enganadores? - perguntou-me o guia, repreendendo-me - Aqui, neste lugar, a piedade vive quando a piedade é morta. Quem pode ser mais cruel que o homem que tenta controlar a vontade divina? Levanta o rosto e veja Anfiarau que tentou fugir da guerra, mas foi engolido pela terra até chegar a Minós, que no fim, a todos aferra. Sabes por que ele e os outros têm a cabeça virada para trás? É porque em vida quiseram demais ver adiante. Foram todos adivinhos e astrólogos que agora só podem olhar para o passado. Olha lá Tirésias que foi homem e também mulher, vê Aronta e também Manto, que deu o nome à cidade de Mântua, onde nasci.
Depois de mostrar a vidente Manto, Virgílio me contou como ela percorreu o mundo por muitos anos até encontrar uma planície desabitada no norte da Itália e lá se estabelecer para praticar magia com seus servos. Lá ela morreu e lá deixou seus ossos, sobre os quais foi construída uma cidade, que ganhou o nome de Mântua.
- Mestre - respondi - tua explicação eu sinto tão certa, que outra seria como carvão extinto. Mas dize, dessa gente que passa, se há alguma outra digna de nota.
- Sim, aquele ali cuja barba se espalha do queixo sobre suas costas é Eurípiles - mostrou Virgílio - e aquele outro, magro, é Michael Scott, que sabia tudo sobre magia. Vê Guido Bonatti e vê Asdente, que hoje deseja ter sido mais dedicado na arte de fazer sapatos. Mas agora vamos, pois a lua cheia já se põe e o dia já amanhece.
E enquanto ele falava, nós andávamos.
Vala dos corruptos - Malebranche (demônios)
De cima de outra ponte paramos para ver a próxima fissura de Malebolge, que era incrivelmente escura. Lá embaixo um grosso breu fervia. Eu olhava mas nada via a não ser as bolhas de piche que a fervura levantava. Enquanto meus olhos procuravam alguma coisa naquela escuridão, meu guia gritou:
- Cuidado, cuidado! - e logo me arrancou do lugar de onde eu estava.
Voltei-me e vi logo atrás um diabo preto que corria em nossa direção. Ai, mas como ele tinha um aspecto feroz! Com suas asas abertas ele corria ligeiro com os pés. Levava um pecador no seu ombro pontiagudo, que pelos tendões dos pés tinha seguro. Parou diante da pez fervente, e gritou:
- Ó Malebranche, aqui está mais um daqueles anciões devotos de Santa Zita. Cuida dele pois eu vou buscar outros. Quase todos naquela terra são corruptos, exceto, é claro, Bonturo! Lá, com dinheiro, qualquer não vira um sim.
Depois que falou, soltou o pecador das alturas, que submergiu no líquido espesso. O diabo voltou correndo pelos recifes e sumiu na escuridão. O pecador ainda tentou ressurgir na superfície, mas vários demônios que estavam sob a ponte saíram e o perfuraram com mais de cem garfos, levando-o a outra vez submergir.
- É melhor que te escondas. - sussurrou o mestre, preocupado com a presença de tantos demônios - Não é bom que saibam da tua presença. Fica aí atrás daquela pedra e não saias tu de lá até que eu te chame!
Fui e obedeci. Seu temor tinha sentido. Quando o mestre chegou ao outro lado da vala, eles surgiram. Saíram todos de baixo da ponte e quando viram o meu guia, apontaram arpões na direção dele.
- Nenhum de vós seja inimigo! - gritou Virgílio - e antes que me ataquem, que venha um de vós e me ouça!
- Vai Malacoda! - gritaram todos.
E então, um dos diabos se separou do grupo e se aproximou, rosnando:
- De que lhe adianta falar comigo?
- Crês tu Malacoda - falou o mestre -, que eu teria chegado até aqui se não fosse por vontade divina? Me deixa seguir pois no céu a vontade é que eu guie alguém por este caminho.
Com isto o orgulho dele caiu, assim como o seu arpão que parou a seus pés, e gritou para os outros:
- Não toquem nele!
O mestre então gritou, ordenando que eu saísse do meu esconderijo. Eu obedeci e corri na direção dele. Vendo todos aqueles diabos voando na minha direção, temi por um instante que o pacto não fosse cumprido.
- Vou tocá-lo! - gritou um - Aonde? - perguntou outro. Mas Malacoda voltou-se rapidamente para eles e os afastou, gritando:
- Fica quieto Scarmiglione! - e depois virou-se para nós, dizendo - Esta ponte sobre a sexta vala está em ruínas. Se vocês quiserem prosseguir, devem continuar por esta beira e mais adiante irão encontrar outra ponte. De ontem, cinco horas mais que agora, já são 1266 anos desde que esta via foi destruída. Para lá mandarei alguns dos meus guardas que irão fiscalizar os pecadores no fosso. Podem ir com eles. Eles se comportarão.
E então Malacoda designou 10 diabos para nos escoltar, chamando-os um a um pelo nome: Calcabrina, Alichino, Cagnazzo, Libicocco, Draghignazzo, Graffiacane, Ciriatto, Farfarello, Rubicante e Barbariccia, o chefe da expedição.
- Meu mestre, o que é que eu vejo? - falei, assustado - dispensa a escolta e vamos embora sozinhos, pois eu não quero seguir na companhia deles. Se prestas atenção, como é o teu costume, vê como eles mostram os dentes e piscam uns para os outros.
- Não há o que temer - respondeu o mestre - deixa que eles mostrem seus dentes à vontade. Eles o fazem para as almas que fervem e não para nós.
Antes de seguirmos pela beira à esquerda, os demônios saudaram Malacoda soprando, com a língua firme entre os dentes, fazendo um som obsceno. Esperavam um sinal para partir. O demônio então, os respondeu de volta com o ânus em som de trombeta.

 
Escolta de 10 demônios
Seguimos com os dez demônios. Durante a nossa jornada eu pude ter uma noção melhor de todo o vale e do breu fervente. Observei que, como os golfinhos que mostram suas costas acima da água, eventualmente um pecador mostrava as suas para aliviar por um instante seu sofrimento, e logo tornava a mergulhar. Outros ficavam à beira da fossa, mas submergiam assim que Barbariccia aparecia.
Vi então um pecador que, vacilante, demorou para retornar à calda fervente. Antes que o coitado pudesse submergir, Graffiacane o capturou agarrando-o pelos cabelos. Os diabos gritavam:
- Ó Rubicante! Enfia tuas garras nas costas dele! Esfola! Rasga a pele!!
Enquanto os demônios gritavam, eu voltei-me para o mestre e perguntei:
- Mestre, se puderes, descubra quem é este desgraçado que caiu nas mãos de seus adversários.
Meu guia se deslocou até o pecador, perguntou de onde viera, e ele respondeu:
- Eu nasci e fui criado no reino de Navarra. Depois fui servo do bom rei Tebaldo e lá aprendi a arte da barataria. Agora pago a conta neste caldo quente.
Ciriatto, que tinha duas presas no rosto que nem javali, fez-lhe sentir como uma só poderia rasgá-lo. Mas Barbariccia interveio, agarrando-o.
- Aproveita enquanto eu o seguro! - disse Barbariccia a Virgílio - Se quiseres que ele fale mais, continue a interrogá-lo antes que os outros o dilacerem.
- Então dize-me - continuou Virgílio - conheces algum latino lá embaixo?
- Eu estava com um agora há pouco. Queria eu estar lá embaixo com eles para não receber estas garfadas.
- Já esperamos demais! - gritou Libicocco, que com um garfo arrancou-lhe um pedaço do braço. Draghinazzo já ia furá-lo com o quinhão mas desistiu assim que percebeu que o decurião Barbariccia olhava para ele, irritado.
- Mas quem é aquele com quem disseste estar há pouco no caldo fervente? - continuou o mestre. - Era o frei Gomita de Gallura, soberano especulador. - respondeu o condenado - Vive ele a conversar com Dom Michel Zanche sobre a Sardenha. Ai! Mas olha só o diabo como ri! Eu poderia te falar mais, mas temo que esse demônio se zangue e venha me torturar!
Mas Barbariccia virou-se para Farfarello, que já avançava, gritando:
- Te afasta, ave de rapina nojenta!
- Se quiseres ver toscanos e lombardos - continuou o pecador -, eu os farei vir aos montes! É preciso, porém, que os Malebranche se afastem, pois eles os temem. Eu, sozinho, sem sair deste lugar, farei vir sete deles com um simples assobio. É o nosso sinal para indicar que algum de nós está fora.
- Olha só a trapaça que ele armou para escapar! - disse Cagnazzo, rindo e sacudindo a cabeça.
- Trapaceiro eu sou - respondeu o esperto -, especialmente se for para trazer desgraça aos meus companheiros.
Mas Alichino queria ver para crer e o desafiou:
- Se tu mergulhares eu não correrei atrás de ti, pois tenho asas para te alcançar. Nós te deixaremos livre e ficaremos atrás do vale. Veremos se és mais rápido que nós.
E então todos tomaram o rumo do vale, começando com o que se opunha àquele jogo. Astuto, o corrupto saltou e conseguiu fugir. Alichino não conseguiu alcançá-lo. Calcabrina, irado, correu atrás também, torcendo que o danado escapasse para armar uma briga com Alichino. Assim que o pecador submergiu ele saltou em cima do seu irmão, e ambos se enroscaram no ar sobre o piche. Os dois começaram a se mutilar com suas garras até que caíram na pez fervente. O calor foi suficiente para separá-los, mas não conseguiam sair do poço, pois suas asas estavam encharcadas. Saíram então todos os outros diabos para os socorrer.
E lá os deixamos, naquela confusão, e continuamos sozinhos.
Vala dos hipócritas - Frades gaudentes
Caminhávamos sem companhia: um na frente e o outro atrás. Durante a caminhada voltei a pensar naqueles demônios. Se por nossa causa eles sofreram dano, eles devem estar irados. Considerando os seus maus instintos, certamente não deixarão de vir atrás de nós. Esses pensamentos deixavam meus cabelos em pé e por causa do medo eu olhava para trás o tempo todo.
- Mestre - disse -, se não tiveres como nos esconder, eu temo que os Malebranche poderão nos encontrar. Eu os sinto; eu os ouço como se estivessem vindo.
- O teu temor agora juntou-se ao meu, e então vou procurar uma maneira de escaparmos. Se o declive a direita permitir nossa descida à próxima vala, teremos como escapar do ataque imaginado.
Mal tinha terminado de expor o seu plano, eu os vi chegando com suas asas abertas, não muito longe, para nos pegar! Meu guia tomou-me no colo de repente e se jogou na rocha escarpada até escorregar na calha, rasteiro. Quando chegamos lá embaixo os diabos já nos observavam do alto do precipício. Eles nos amaldiçoavam, irritados. Descer, eles não podiam, pois eram proibidos de ultrapassar a quinta vala.

Dante e Virgílio conseguem escapar da perseguição dos dez demônios que os escoltavam. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).
Deixamos os diabos para trás e caminhamos pela quinta vala. Vimos gente colorida, de capuz, caminhando lentamente e usando capas de ouro brilhante por fora, mas de pesado chumbo por dentro. Eles sofriam e choravam, cansados pelo peso intenso.
- Meu guia - falei - enquanto caminhamos por esta vala, olha em volta e dize-me se vês alguém, cujos feitos ou nome me seja conhecido.
- Mais devagar, tu que correis por este ar escuro! - gritou um espírito, que ouvira minha fala toscana - Talvez eu possa conseguir o que tu queres.
Parei e vi duas almas que se aproximavam lentamente. Quando chegaram, me olharam e conversaram entre si:
- Ele parece vivo o que mexe a garganta, e se os dois estão mortos, qual privilégio permite que andem despidos da pesada manta? - conversaram, e depois, a mim se dirigiram - Ó toscano que vieste visitar o colégio dos hipócritas, dize para nós quem tu és.
- Eu nasci e cresci na grande cidade banhada pelo Arno e tenho o corpo que sempre possuí - respondi. - Mas quem sois vós, destilando lágrimas de dor que correm pelas vossas faces?
- Frades gaudentes fomos - respondeu o primeiro -, e bolonheses. Eu sou Catalano e este é Loderingo. Tua terra nos deu um cargo que se costumava dar a um homem só, para manter a paz, e nós fizemos mal uso dele.
Eu ia começar a responder aos frades quando me chamou a atenção um outro que sofria intensamente crucificado ao chão. O frade Catalano, que me observava, falou:
- Este que tu vês crucificado disse aos fariseus que era mais oportuno sacrificar um homem que atormentar todo o povo. Nu, ele jaz no caminho, e como vês, sente o peso de cada um que passa sobre ele. Todos os outros do seu conselho estão aqui também.
- Poderia nos dizer, se vos for permitido - perguntou Virgílio ao frade - se há, à direita, alguma passagem conhecida pela qual nós dois possamos sair, sem que seja necessário invocar os diabos para nos tirar desta vala?
- Mais perto que imaginas - respondeu o frade - há uma ponte que une todos os anéis, mas nesta parte ela está destruída. Porém, embora a ponte esteja quebrada, é possível subir escalando suas ruínas.
Ao ouvir a explicação do frade, Virgílio ficou parado, cabisbaixo. Depois disse, irritado:
- Ele mentiu, aquele demônio desgraçado! Mentiu! Não havia outra ponte, era mentira!
- Uma vez em Bolonha - interrompeu o frade -, fiquei sabendo dos vícios do diabo. Um deles é que ele é falso e é o pai da mentira.
Virgílio se afastou em passos largos, mostrando irritação no seu rosto. E eu parti também atrás dele, seguindo o rastro de seus pés.

Vala dos ladrões - Espírito de Vanni Fucci
Virgílio, visivelmente irritado, nada falou até que chegamos diante das ruínas da ponte. Lá, imediatamente recuperou o seu semblante amável e otimista. Estudou por um instante as ruínas e abriu os braços para que eu me apoiasse nele para realizar a subida. E assim subimos, lentamente, ele me erguendo, e eu abrindo caminho.
- Segura aquela pedra ali - ordenou o mestre -, mas tenha cuidado! Veja antes se ela te sustenta.
Foi dura e difícil a escalada. Fosse o aclive mais íngreme ou mais longo eu certamente seria vencido pelo cansaço. Em Malebolge, cada poço é mais baixo que o anterior, portanto, a altura da subida deste lado era bem menor que a altura da nossa descida do lado oposto.
Chegamos, enfim, à derradeira pedra da ruína. Eu estava tão exausto que assim que paramos, aproveitei a oportunidade para me sentar. O mestre não gostou:
- Precisas deixar o cansaço de lado - disse ele -, pois estirado sobre a pluma ou a colcha, a fama não se alcança. E sem ela a vida passa sem deixar qualquer vestígio. Levanta! Vence o cansaço e anima-te! Mais longa escada nos aguarda. Com ânimo se vence qualquer batalha, quando o corpo pesado não atrapalha.
Com esse incentivo prontamente me levantei, falante, para me mostrar valente e destemido. Mas minha fala foi interrompida por uma voz que surgia já do outro fosso.
Não dava para entender o que a voz dizia. Nem no meio da ponte. Era uma voz apressada, irritada. Eu me inclinei para olhar mas não dava para ver coisa alguma.
- Mestre - pedi - que tal atravessarmos até o outro lado e descermos o muro? Aqui onde estamos eu só ouço e nada entendo. Olho para baixo e nada vejo.
- O que pedires eu faço sem reclamar - respondeu Virgílio.
Descemos pela testa da ponte, pela oitava ribanceira que margeia a sétima calha, e lá vimos uma vasta multidão cercada de terríveis serpentes das mais diversas espécies. Só de pensar naqueles répteis terríveis meu sangue gela, pois eu nunca vira nada igual. No meio das serpentes corriam almas  nuas, horrorizadas, com as mãos amarradas às costas por outras cobras que as apertavam, envolvendo seus corpos. Assistimos quando uma serpente perfurou um dos espíritos que estava próximo a nós. Ela atravessou seu colo se inseriu no seu busto. Imediatamente ele se incendiou e foi reduzido a um amontoado de cinzas. Mas aquelas cinzas espalhadas começaram a se mexer, e, lentamente, a se unir. Foram se juntando sozinhas até que haviam formado um homem. Ele se levantou como se acordasse de um sono profundo. Estava pasmo e suspirava aflito.

Ladrões torturados por serpentes na sétima vala do Malebolge. Ilustração de Gustave Doré (séc XIX).
Meu guia então se aproximou e perguntou quem ele era. O condenado respondeu:
- Eu chovi de Toscana faz pouco tempo neste abismo. Eu gostava mais da vida bestial que da vida humana, como a mula que fui. Sou Vanni Fucci, a besta. Pistóia era a minha toca.
- Mestre - pedi -, pergunta a ele por que ele sofre nesta vala. Eu achava que ele estaria mergulhado no rio de sangue, como os outros violentos.
O pecador ouviu e não dissimulou. Virou-se para mim com um rosto envergonhado, e disse:
- Maior é a dor de teres me encontrado nesta miséria que a dor que senti quando perdi minha outra vida. Mas agora não posso negar-me em te responder. Eu estou aqui por que eu fui um ladrão. Fui eu quem roubou aquela sacristia onde outro levou a culpa. Mas para que não que fiques feliz por ter me encontrado aqui, se algum dia escapares, abre os ouvidos e escuta minha profecia: Pistóia perderá todos os seus Negros e Florença renovará gente e modos. De Valdimagra virá um raio envolvido por nuvens negras, trazendo uma tempestade amarga sobre o campo de Piceno, onde destruirá as nuvens claras, e todo Branco será então ferido. Esta previsão eu fiz para que sofras!

 
Transformação em répteis
No final de seu discurso, o ladrão fechou a mão em punho deixando apenas o dedo médio, ergueu-a para o alto e gritou:
- Toma, Deus, olha, isto aqui é pra você!
E dali em diante, todas as serpentes se tornaram minhas amigas, pois uma chegou e se enrolou no seu pescoço, impedindo que ele falasse. Depois veio outra e se enrolou com tanta força nos seus braços que ele não pôde mais sequer se mexer.
Ah! Pistóia, Pistóia, por que não te incineras de uma vez por todas, pois nem teus fundadores fizeram tanto mal quanto agora fazes! Eu achava que não veria mais, neste inferno escuro, figura mais orgulhosa que aquele que morreu nos muros de Tebas.
Sem dizer mais nada ele fugiu. Pouco depois, apareceu um centauro, que o procurava. Estava totalmente coberto de serpentes. No ombro, atrás da nuca, um dragão com suas asas abertas, cuspia fogo em quem se aproximasse.
- Este que tu vês é Caco - apontou-me o mestre -, filho de Vulcano que aqui cumpre pena por ter roubado o rebanho do seu vizinho, Hércules, que foi quem depois o matou com cem golpes de clava, dos quais não sentiu talvez mais que dez.
Enquanto Caco passava, três espíritos se aproximaram e nos perguntaram:
- Quem sois vós?
Nossa conversa então se interrompeu. Eu não os conhecia, mas cheguei a ouvir alguém do grupo perguntar:
- Onde será que está Cianfa?
Enquanto eu os olhava, sem nada dizer, de repente uma serpente com seis patas se arremessou sobre um deles, envolvendo-o totalmente. Com as patas do meio apertava seu abdômen. Com as da frente segurava seus braços e com as de trás, suas pernas. Os dentes afiados ela afundava na sua face e sua cauda passava no meio das pernas do ladrão, perfurando-o, atravessando seus rins e saindo reta pelo ventre. Entrelaçava-se tão firmemente no pecador que os dois - alma e réptil - se fundiam como se fossem cera. Nem um nem o outro pareciam ser mais o que eram. Um dos seus companheiros então gritou:
- Ó Agnel, como mudaste! Não és mais nem dois nem um!
Das duas cabeças agora só havia uma e já surgiam dois semblantes em um único rosto. Aquele ser não era mais gente nem serpente. Transformara-se em um monstro nunca visto. E a imagem deturpada assim se foi, num passo lento.
Vi então correndo como lagartixa, na direção de um dos dois ladrões restantes, uma cobrinha preta. Ela veio e afundou os dentes em um deles, atravessando-lhe o umbigo. Depois caiu e se estendeu diante dele. O ladrão nada falava. Permanecia em pé como em transe, olhando para o réptil que o olhava. Pelo focinho de um e pela ferida do outro saía fumaça. Os dois começaram então a se transformar. A serpente aos poucos adquiria feições que sumiam no condenado, numa troca perfeitamente simétrica. Assim que a cauda dela se dividia em duas partes, as pernas do pecador se uniam, e se fundiam perfeitamente. A pele dele se tornava cada vez mais dura, se cobrindo de escamas, enquanto a dela se tornava macia. Os seus braços entravam pelas axilas enquanto que na fera, duas patas cresciam. Pouco depois, um tombou e começou a rastejar enquanto o outro se levantou. O que estava em pé ainda não tinha orelhas e exibia uma língua de serpente, mas logo suas orelhas começaram a nascer e sua língua se uniu, perfeitamente. A língua do que estava no chão se dividiu em duas partes e ele recolheu as orelhas como uma lesma recolhe seus chifres. Quando a fumaça finalmente cessou, o réptil de quatro patas, recém formado, partiu assobiando, fugindo do vale para as encostas. O outro seguia a fera, andando e falando. Mas antes de partir, ele se virou e falou para aquele que não havia se transformado:
- Quero agora que Buoso corra com as quatro patas, como eu fiz.
E apesar dos meus olhos confusos e minha mente desorientada, não deixei de reconhecer os dois que ficaram. Um, era Puccio Sciancato, o único que não se transformara, e o outro era aquele por quem Gaville chora.

Vala dos maus conselheiros - Espírito de Ulisses
Alegra-te Florença pois és tão grande que até pelo inferno o teu nome se expande! Cinco eminentes florentinos encontrei naquele fosso, o que me fez sentir vergonha de ti.
Subimos pela escada de pedras que havia sido o caminho pelo qual havíamos descido. Ele ia na frente e me puxava rochedo acima, apoiando-se nas rachaduras, por onde o pé não podia avançar sem a mão.
A oitava vala resplandecia de chamas. Isto pude ver quando meus pés chegaram a um ponto onde o fundo já aparecia. As chamas não estavam imóveis. Elas se moviam continuamente como gente o que me levou a imaginar que mantinham em sua custódia um pecador. O meu guia, como sempre adivinhando meu pensamento, confirmou:
- Em cada fogo há um espírito que é torturado pelo fogo incessante.
- Ó mestre - perguntei -, isto que acabas de falar eu já tinha adivinhado, mas dize-me quem está naquele fogo duplo, com uma chama dividida em duas pontas?
- Naquela chama - respondeu - sofrem dura pena Ulisses e Diomedes. Naquela chama se arrependem de ter tramado o logro do cavalo de Tróia e o roubo do Paládio.
- Podem eles falar através do fogo? - perguntei.
- Sim - respondeu o mestre -, mas deixa que eu fale, pois, sendo gregos, podem te desprezar.
Chegou o fogo a um lugar propício e o mestre se aproximou, perguntando:
- Ó vós que são dois dentro de uma única chama, se mereci de vós o meu viver, se mereci de vós alguma fama, quando no mundo meus altos versos escrevi, não vos moveis, mas que um de vós me diga onde foi perdido, para morrer.
A ponta maior da chama logo cresceu e começou a se agitar, e, como se fosse uma língua ondulando, virou-se para nós e falou:
- Quando descobri que nada podia impedir minha ânsia de viajar e conhecer o mundo, nem ternura de filho ao velho pai, nem o amor da minha Penélope, decidi explorar o mar aberto e profundo, acompanhado de minha tripulação fiel. Passamos da Espanha e Marrocos, e continuamos além dos pilares que por Hércules foram fixados, sinalizando aos homens que daquele ponto não passassem. Navegamos em mar aberto por cinco meses, com a vela sempre à esquerda, até que vimos no horizonte uma enorme montanha. Mesmo distante, apagada e escura, nunca eu vira outra assim tão grande. Mas nossa alegria durou pouco e logo transformou-se em pranto. Da nova terra saiu um grande redemoinho que atingiu a nossa embarcação na popa. Três vezes o barco rodou até que na quarta fomos sepultados nas profundezas do oceano.

Espírito do Frade Guido de Montefeltro
A chama agora estava imóvel e quieta. Nada mais falou e já se afastava com a licença do poeta quando uma outra, que vinha logo atrás, chamou nossa atenção à sua ponta que liberava ruídos estranhos. A ponta começou a mover-se, como se fosse uma língua, até que ouvimos:
- Ó tu a quem dirijo a minha voz, que falavas há pouco em lombardo, dizendo: "Podes ir, não te peço mais nada", embora tenha eu demorado em chegar a ti, não te incomodes se eu falar contigo, pois vês que não incomoda a mim, que estou ardendo em chamas! Se tu acabas de cair do mundo, daquela doce terra latina, dize-me, está a Romanha em paz ou em guerra?
Eu ainda escutava a chama falar quando o mestre me cutucou e disse:
- Fala tu, pois este é latino!
E eu, que já estava preparado para lhe responder, comecei:
- Ó tu que te escondes nessa chama, no coração dos seus tiranos tua Romanha sempre esteve em guerra, mas quando eu a deixei, ela não estava envolvida em conflitos. Ravena está como há muitos anos e a águia de Polenta já estica suas asas sobre a Cérvia. O mastim novo de Verrucchio, assim como o velho, continuam a sugar o sangue de seu povo.
Falei-lhe ainda de Forli, Lamone, Santerno e outras cidades da Romanha. No final, lhe pedi:
- Agora peço que me conte quem és, para que eu possa estender, no mundo, a tua fama.
- Se eu acreditasse que eu estava falando com uma alma que iria voltar ao mundo, esta chama não mais se moveria, mas como nunca, deste abismo, alma alguma jamais escapou, sem medo de infâmia eu te respondo. Fui guerreiro e depois frade franciscano, acreditando que assim poderia corrigir os meus erros do passado. Arrependi-me dos meus pecados e confessei meus erros. Ai miserável! E bem teria valido se não fosse aquele príncipe dos novos fariseus que me pediu para ajudá-lo a destruir a fortaleza Perestrina. Para ele, não importava o cargo supremo que ocupava, nem os votos sagrados e nem o cordão que eu usava. Ele me pediu conselho, e eu calei. Mas depois falou de novo: "Não sejas desconfiado! Eu já te absolvo dos pecados que vieres a cometer. O céu eu posso fechar ou abrir, como tu sabes, pois são duas as chaves que meu antecessor não soube guardar." Eu, convencido pelos seus argumentos, aceitei, e disse: "Padre, desde que me absolvas do pecado que estou prestes a cometer, te aconselharei: Prometa a eles, anistia. Depois, quando obedecerem, volte atrás e não cumpra a promessa! Se assim fizeres, triunfarás!" No momento da minha morte, São Francisco veio buscar minha alma, mas antes que ele pudesse me levar um querubim negro se antecipou e, utilizando argumentos lógicos, demonstrou que eu deveria ir para o inferno: "Para baixo ele virá comigo, pois deu conselho fraudulento. Não se pode absolver o impenitente, nem pode o arrependido ainda querer pecar, pois assim nada vale seu arrependimento." Coitado de mim. Quando ele me tomou ainda falou: "Nem imaginavas que eu pudesse argumentar tão bem, não foi?" O demônio me levou até Minós, que se enrolou no rabo oito vezes e, de tanta raiva ainda o mordeu, me enviando a esta oitava vala para ser prisioneiro do fogo eterno.
Depois que concluiu o seu relato, a chama calou-se e se afastou, torcendo e debatendo o corno agudo. Eu e o mestre dali partimos, subindo pela escarpada para o arco seguinte, que atravessa o fosso onde pagam suas penas aqueles que as ganharam desunindo.

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